Pequenos silêncios, grandes feridas: como começa o ciclo da violência doméstica?
- Calúzia Santa Catarina

- 27 de ago.
- 3 min de leitura

Você lembra do seu primeiro namoro? Muitas vezes, no começo de uma relação, a gente se esforça para agradar. Eu mesma já me peguei fingindo gostar de sagu na casa do meu primeiro namorado, só para não decepcionar. Parece bobo, mas esse tipo de concessão mostra como, em nome do amor, aprendemos a silenciar pequenas partes de nós.
Agora, imagine esse mesmo silêncio em situações mais sérias: uma grosseria aceita, uma piada machucando, mas a gente dizendo a si mesma: “Ele vai mudar, é só uma fase”.
É assim que, muitas vezes, a violência começa. Não com um tapa, mas com comportamentos aparentemente pequenos que vão sendo normalizados:
o grito disfarçado de nervosismo;
o costume de bater portas ou jogar objetos;
a forma como trata os outros (desrespeito com garçom, família, amigos);
piadas cruéis ou ironias que diminuem;
a reação quando é contrariado (raiva, intimidação, desprezo).
Cada vez que a mulher silencia diante desses sinais, a violência encontra terreno fértil para crescer.

A psicóloga Lenore Walker (1979) descreveu esse processo no chamado ciclo da violência:
Fase de tensão: críticas, grosserias, humilhações veladas.
Fase da explosão: gritos, empurrões, violência mais explícita.
Fase da lua de mel: arrependimento, promessas de mudança, flores, declarações de amor.
Esse ciclo se repete tantas vezes que a mulher passa a acreditar que aquele pedido de desculpas sincero vai, enfim, trazer a mudança. Mas a verdade é: ninguém muda porque o outro deseja. Só muda quem realmente decide mudar.
Ao longo da infância, crescemos cercados por histórias que, de maneira indireta, nos ensinam a naturalizar o sofrimento em nome do amor. Nos contos de fadas, por exemplo, a Bela suporta a agressividade da Fera até que ele se transforme em príncipe. Em tantas narrativas, a mensagem implícita é a mesma: se a mulher for paciente, compreensiva e silenciosa, será recompensada.
Esse tipo de enredo molda nossa forma de amar, ainda que de forma inconsciente. Acreditamos que suportar é prova de amor, que esperar é sinal de força, que o outro pode, e vai, mudar se receber cuidado suficiente. Mas, na vida real, essa espera pode custar a autoestima, a liberdade e até a vida.
E eu te pergunto: quantas vezes você também já silenciou suas vontades, suas dores, só para manter uma relação? Quantas vezes se pegou sorrindo quando, na verdade, tinha vontade de chorar?
Silenciar pode parecer amor, mas muitas vezes é apenas medo disfarçado de cuidado. E todo silêncio guardado abre espaço para que a violência se instale e se repita. Talvez seja hora de perguntar: “Até onde meus pequenos silêncios estão abrindo portas para dores maiores?”

O que fazer e onde procurar ajuda?
Reconheça: violência não é só física. Gritos, humilhações e intimidações também são violência.
Fale com alguém de confiança: uma amiga, familiar, profissional de saúde.
Busque ajuda: disque 180 (Central de Atendimento à Mulher), Delegacia da Mulher, CRAS/CREAS no seu município.
Se sentir necessidade, procure apoio psicológico, a psicoterapia é um espaço seguro para fortalecer sua voz e sua autonomia.
Você não está sozinha. O silêncio não precisa ser seu destino.
E se você for homem e se reconhecer nesses comportamentos?

A violência não começa apenas no gesto extremo, ela começa em atitudes diárias, em palavras, em silêncios que intimidam. Se você, homem, se reconhece em alguns desses comportamentos ou percebe dificuldade em controlar seus impulsos, saiba: buscar ajuda é sinal de coragem, não de fraqueza.
O passado não define quem você pode ser daqui em diante. É possível aprender novas formas de se relacionar, mais saudáveis e respeitosas. Procurar apoio psicológico pode ser o primeiro passo para quebrar ciclos e construir relações baseadas em cuidado e reciprocidade.
A mudança é possível. E ela começa agora, com uma escolha diferente.




